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domingo, 19 de outubro de 2008

Cidade das Estrelas é 2ª casa de astronautas americanos


John Schwartz
Garrett Reisman estava a caminho da Cidade das Estrelas, uma antiga base militar secreta da União Soviética, para um programa de treinamento que duraria semanas quando recebeu um telefonema no celular. Era Steven Lindsey, seu chefe, o diretor do programa de astronautas da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa).

"Volte a Houston. Seu treinamento foi cancelado. Eles estão jogando duro", recorda Reisman, apanhado em uma disputa passageira entre a Nasa e a Roscosmos, a agência espacial da Rússia.

Mas a viagem cancelada de Reisman foi apenas um solavanco em seu caminho para o espaço; o astronauta passou três meses à bordo da Estação Espacial Internacional este ano, fez uma caminhada fora da estação e chegou a trocar piadas com o comediante Stephen Colbert por um link de vídeo ao vivo.

Todo mundo que trabalha com o programa espacial russo tem histórias semelhantes a contar, envolvendo burocracia implacável, regras bizantinas e decisões que parecem motivadas por caprichos.

E muitas dessas histórias transcorrem na Cidade das Estrelas, onde os cosmonautas russos e, agora, astronautas de todo o muno treinam para voar nas espaçonaves russas Soyuz que os transportarão à Estação Espacial Internacional, um projeto que já consumiu US$ 100 bilhões.

A Cidade das Estrelas se tornou um segundo lar para os norte-americanos que colaboram com os russos, e vai ganhar ainda mais importância. Nos cinco anos que separarão o fim do programa do ônibus espacial, que a Nasa encerrará em 2010, e a entrada em operação das novas espaçonaves norte-americanas, em 2015, só a Rússia transportará passageiros para a estação.
Aqueles que trabalham diretamente com os russos dizem que anos de colaboração resultaram em relacionamento forte e respeito mútuo. E afirmam que, não importa quais possam ser as considerações geopolíticas mais amplas relacionadas a depender da Rússia para transporte espacial nos cinco anos em que os Estados Unidos não poderão utilizar espaçonaves próprias para chegar à estação espacial, acreditam que a parceria multinacional que resultou na estação se manterá.

"Trata-se de uma notável realização política", diz Reisman. "Nós passamos por tantos governos diferentes", não só nos Estados Unidos e Rússia mas em dezenas de países que colaboraram com a construção do laboratório orbital. "E o projeto sobreviveu a tudo isso", ele diz. "Está firme, e na verdade só ganhou força com o passar do tempo, à medida que aprendíamos a trabalhar juntos".

Para compreender por que Reisman e pessoas como ele acreditam que a parceria possa continuar funcionando pelas próximos sete anos, é importante compreender o que aconteceu nos 15 anos que se passaram, quando Estados Unidos e Rússia uniram forças, primeiro levando tripulantes norte-americanos à estação espacial russa Mir e depois construindo a Estação Espacial Internacional.

E essa união de forças aconteceu bem aqui, na Cidade das Estrelas - e, de certa maneira, não registrou um início auspicioso.

Nos dias iniciais da parceria, na metade dos anos 90, depois do colapso da União Soviética e em meio às dificuldades que a Rússia estava enfrentando para se estabelecer como Estado autônomo, a escassez de suprimentos ocasionalmente queria dizer fome.

"Não havia comida alguma no estoque", conta Michael Barratt, que trabalhou com as primeiras equipes que prepararam astronautas para serviço na Mir. "Cinco noites por semana jantávamos arroz com feijão".
John McBrine, o atual diretor das operações norte-americanas na Cidade das Estrelas, perdeu 13 quilos em sua primeira passagem de serviço pelo local, entre julho e outubro de 1994.

Os primeiros dias também foram caracterizados por cautela e desconfiança, e os norte-americanos que se integram primeiro ao projeto tinham a forte impressão de que estavam sendo vigiados. Mark Bowman, um dos primeiros norte-americanos a trabalhar sob contrato na Rússia e hoje diretor assistente do programa de vôos espaciais tripulados dos Estados Unidos naquele país, se lembra da teleconferência semanal que costumava realizar com seu chefe em Houston.

"Passados 30 minutos de conversa, a linha emudecia", conta Bowman. "E isso acontecia a cada 30 minutos".

Certo dia, durante a teleconferência, Bowman alertou, aos 28 minutos, que a linha estava para cair, e disse, irritado: "Eu bem queria que esses caras do KGB comprassem fitas mais longas". "Na próxima teleconferência que realizamos", ele recorda, "juro que a linha ficou aberta por 45 minutos antes de cair". Aparentemente, afirma, os anfitriões haviam decidido gravar a conversa em fitas de 90 minutos.

A Energia, empresa fabricante de espaçonaves que fica perto do Centro de Controle de Missão, em Korolev, próximo a Moscou, não permitia que norte-americanos entrassem em suas instalações. Em lugar disso, ela alugou espaço em uma faculdade de engenharia vizinha para preparar o equipamento norte-americano que seria enviado à estação.

"O aquecimento não funcionava", conta Bowman, e o inverno de 1994/5 foi especialmente severo, com temperaturas de menos 20 graus centígrados.
Além da falta de conforto, o alto nível de sigilo do programa espacial russo incomodava ainda mais os norte-americanos. Os russos não explicaram plenamente, por exemplo, o quanto uma acoplagem manual poderia ser perigosa para a Mir e para a espaçonave de carga, em junho de 1997.

Quando uma tentativa resultou em colisão que colocou em risco a vida dos dois cosmonautas russos e do astronauta norte-americano Michael Foale, os ocupantes da decrépita estação no momento, os norte-americanos não estavam plenamente informados.

Mas os sete anos seguintes foram menos gélidos, e mais positivos. "As coisas melhoraram muito, de lá para cá", diz Bowman. O sistema russo se tornou mais aberto e o nível de conforto pessoal e as conveniências melhoraram muito.

Em lugar do sistema telefônico nada confiável do passado, Bowman pode ser localizado em qualquer parte por um serviço digital que se integra à rede da Nasa. "É como se eu estivesse no Centro Espacial Johnson", ele diz.

Os escritórios norte-americanos na Cidade das Estrelas ficam em um edifício conhecido como "Prophy", de "Prophylactorium", o ambiente profilático no qual os astronautas vivem em quarentena antes dos vôos.

Hoje ele porta o nome Hotel Apollo-Soyuz, em honra do encontro histórico entre as espaçonaves dos dois países no espaço. Ao menos esse é o nome que os norte-americanos dão ao estabelecimento: para os russos, ele é o Hotel Soyuz-Apollo.

A Nasa aluga o segundo pavimento - escritórios tediosos com painéis de madeira e iluminação fluorescente esverdeada. Aqui, tradutores interpretam o volumoso material educativo que os astronautas terão de receber - eles aprendem russos e assistem aulas ministradas nesse idioma - e assistentes administrativos organizam os furgões que transportam visitantes dos aeroportos para a Cidade das Estrelas e para Moscou.

No total, há sete funcionários civis da Nasa, nove norte-americanos trabalhando sob contrato como terceirizados e 55 russos empregados em seu país pela agência espacial dos Estados Unidos.

Um fluxo constante de astronautas, controladores de vôo, médicos, cientistas, engenheiros e dirigentes circula pelo local.

Muitos dos norte-americanos vivem em um edifício de apartamentos duplex na Cidade das Estrelas que parece ter caído do espaço diretamente em meio a essa paisagem soviética de edifícios de tijolos, cercas e barreiras. Os apartamentos foram projetados e construídos em estilo norte-americano, para que os visitantes possam, por exemplo, conectar seus laptops à parede sem precisar de adaptador para a tomada.

McBrine e seu pessoal trabalham para criar um senso de comunidade. O dia começa no bangalô de McBrine com um café coletivo para os norte-americanos, quer os permanentes, quer os transitórios.

Jantares de confraternização regulares são outro recurso para combater a sensação de isolamento. A sala de jantar de McBrine costuma estar sempre repleta de astronautas norte-americanos, funcionários da Nasa, cosmonautas russos, viajantes espaciais das agências espaciais européias e japonesa, bem como o ocasional turista espacial milionário.

Mas restam significativas diferenças culturais entre russos e norte-americanos, aqui. Por exemplo, trabalhar lado a lado com os russos, dizem os norte-americano, os ajudou a compreender a abordagem do país com relação à segurança.

Barrett disse que quando ele primeiro visitou as instalações da Cidade das Estrelas, o desnível nas calçadas o surpreendeu. Na Nasa, afirmou, "haveria grandes cartazes vermelhos alertando as pessoas para o risco". E, se alguém caísse, logo surgiria um processo. Na Rússia, conta, as pessoas simplesmente olham para onde andam.

O ponto implícito dessa prática, diz Mark Thiessen, o vice-diretor da Nasa, é que "os russos aceitam riscos¿. Os norte-americanos tentam "eliminar os riscos em lugar de minimizá-los".

A abordagem norte-americana é louvável, ele afirma, mas nem sempre prática, e os norte-americanos por isso terminam sendo mais cautelosos que os russos. "Ninguém se dispõe a dizer que aceita um risco", ele afirma.
Muita gente que escreve sobre o programa espacial russo se concentra na impressão de obsolescência que ele pode causar - os edifícios abandonados e a ferrugem nos locais de lançamento em Baikonur (Cazaquistão) e o fato de que o projeto básico das espaçonaves Soyuz não muda há 40 anos.

Mas os especialistas norte-americano sugerem que o descuido dos russos para com a perfeição cosmético e o desenvolvimento é irrelevante, e que a idade do projeto expõe uma abordagem conservadora quanto aos riscos das viagens espaciais que serviu muito bem ao país.

"Eles gastam dinheiro onde precisam", disse Phillip Cleary, ex-diretor do programa de vôo espacial tripulado da Nasa na Rússia. "Não se preocupam muito em pintar edifícios caso isso seja desnecessário".

Os norte-americanos dizem que, apesar das aparências, os russos dão tanto importância quanto eles à segurança. O resultado, dizem diversos astronautas, é que eles confiam na Soyuz, um produto tão resistente e confiável quanto um fuzil de assalto Kalashnikov.

Os norte-americanos dizem que aprenderam muito sobre como fazer com que as coisas funcionem na Rússia. Sabem que a primeira resposta a qualquer pedido costuma ser não, mas que negociações podem reverter essa decisão.

Conhecer as pessoas certas é mais importante que conhecer as regras. "Não existe acordo melhor do que um relacionamento", diz Barratt.

E nenhum deles questiona a dedicação dos colegas russos. No pior momento da crise econômica soviética, conta Barratt, "os trabalhadores foram instruídos a tirar férias", por dois meses, para que o governo não precisasse pagar seus salários. "E eles apareciam para trabalhar todos os dias", ele recorda.

Foale, que viveu na Mir e na Estação Espacial Internacional, diz que "os russos sempre viram os Estados Unidos como inimigo número um e parceiro número um". Os líderes do país "pensam em prazo muito longo", ele diz, "e os russos não são conhecidos por jogar xadrez mal".

Em sua opinião, o mais importante para garantir a cooperação futura é firmar uma estratégia de cooperação internacional no retorno à Lua, o que daria aos russos interesse na parceria e no resultado. "Temos só de indicar o contorno de uma estratégia, e creio que não haverá problema", diz. "Mas precisamos de uma estratégia".

Os trabalhadores norte-americanos na Cidade das Estrelas dizem que, em nível pessoal, a geopolítica simplesmente não importa. Thiessen disse que quando o assunto surge em conversa com os anfitriões russos, eles respondem: "Isso é política. Que os governos se preocupem com o governo. Somos engenheiros. Vamos resolver o problema prático".

Tradução: Paulo Migliacci


The New York Times

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